Episódios soltos I

Episódios soltos
A vala…
Há muitos, muitos anos, talvez mais de trinta e oito, um avô em boa forma nos seus oitenta anos, foi num sábado de manhã cinzenta e fria, talvez Janeiro, talvez Fevereiro, sair com os dois netos para o habitual passeio matinal.
Mantinha-se desta forma activo e partilhava da companhia dos seus netos, agora na escola primária.
Sempre sonhara com um filho, mas só teve quatro filhas. Ainda que se sentisse feliz com as mesmas, nada se comparava à felicidade que sentira ao saber do nascimento do primeiro neto e depois do segundo.
Gostava de estar com eles, de lhes mostrar a terra onde vivera nos últimos 35 anos, falando-lhes dos nomes das ruas, ensinando-lhes os caminhos e explicando-lhes o valor dos prédios mais significativos e dos locais com mais significado histórico.
Lembrava os velhos tempos em que, como respeitado comandante do posto local da GNR percorria a pé todas as ruas, todas as aldeias, todas as estradas e todos os campos, que ainda conhecia como a palma da própria mão.
Naquela sábado de ameno Inverno foram pela estrada principal até à mais vizinha das aldeias e depois regressaram pelos campos lavrados, mostrando com orgulho o seu sentido de orientação e o perfeito conhecimento dos caminhos rurais.
Por entre vinhedos e pomares de pêra e maçã, plantações de hortícolas e terrenos em pousio, assim decorreu suave e alegremente uma caminhada que a memória dos participantes não mais olvidaria.
Cerca de dois quilómetros a norte da conclusão da caminhada e bem merecido almoço, uma vala cortava o caminho aguardando o regresso dos trabalhadores no reinicio da semana de trabalho.
A vala teria metro e meio de largo e uns dois metros de fundura.
Ainda garboso do seu passado militar e da forma que mantivera até tão avançada idade, apesar do coração lhe estar a pregar algumas partidas fruto dos anos de preocupação e dificuldades que passara para arrancar a família à pobreza dos seus antepassados que bem conhecera na sua juventude beirã, o idoso avô não hesitou no salto para ultrapassar o obstáculo.
O neto mais novo e afoito seguiu-lhe prontamente o exemplo, desejoso de regressar ao quente da casa.
O neto mais velho, orgulho do avô apesar de não ter saído nem republicano nem benfiquista, antes monárquico e do belenenses, perante o obstáculo faltou-lhe a confiança e a determinação. Procurou passagem à esquerda ou à direita, mas e extensão da vala vedava-lhe alternativa. Ou voltava para trás ou saltava.
O irmão mais novo gozava a situação.
O avô, paciente como só os avôs sabem ser, saltou para trás e para a frente para mostrar que era fácil e incentivar o neto.
Após algum tempo este decidiu arriscar o salto e facilmente conseguiu ultrapassar o obstáculo.
Quantas vezes na vida não somos confrontados com obstáculos que parecem inultrapassáveis mas que afinal até existe forma de os superarmos?
Muitas vezes não conseguimos e desistimos, seguimos caminhos errados e desperdiçamos oportunidades porque nos falta lá um avô que nos ajude a ganhar confiança e arriscar ultrapassar os obstáculos que nos impedem de irmos mais além e atingirmos os nossos objectivos.
Este avô foi o meu avô e esta história aconteceu tal e qual descrita.
O meu avô Manuel foi a melhor pessoa que conheci na vida e já muitos anos se passaram e muitas vidas se cruzaram com a minha.

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