Once upon a time in Angola



Once upon a time in Angola
A nostalgia do tempo que passa vai-nos trazendo à memória pequenos episódios de vivências passadas quais smarties coloridos que alegram ou assombram o nosso viver e a essência do nosso ser.
Nasci no Dundo, norte de Angola, rica terra de diamantes. Há época o meu pai trabalhava para a Diamang (companhia que explorava as minas de diamantes da Lunda Norte) e habitava uma casa com um pequeno quintal demarcado por videiras e um muro tipicamente ribatejano numa terra chamada Cafunfo.
Era tipo bebé come e dorme (dormia sossegado a noite toda e só acordava quando tinha fome e mesmo assim ficava sossegado até alguém reparar em mim…)
Tão sossegado era eu que os meus pais decidiram ter um segundo filho… big mistake… durante 3 meses não se calou de dia e de noite…
A minha mais ancestral memória vem do dia dos meus dois anos quando recebi do meu padrinho a miniatura de um jipe que o meu irmão teve o cuidado de estragar levando-me a correr a casa á procura do padrinho para este arranjar o que estragado fora.
Recordo-me de ter dados os primeiros (e últimos) passos de bicicleta no referido quintal e da azáfama de preparar as coisas para a mudança para nova morada noutra terra chamada Calonda.
Aqui recordo as vivendas de grandes corredores e salas enormes onde se faziam grandes almoços e jantares.
Na estrada fronteira aos relvados um dia sentaram-se todos os empregados das casas, em círculo e com ar assustado. Mais tarde percebi que enquanto eu e o meu irmão andávamos a brincar no relvado, tínhamos a próxima companhia de uma cobra piton (motivo do medo dos empregados, que em vez de alertarem para o perigo ficaram caladinhos a protegerem-se a eles próprios).
Lembro os empregados: o Fernando (cozinheiro que na ausência dos nossos pais despachava o nosso almoço com saladeiras de sopa), o André, o Adriano e o Japão.
O Manuel, filho do Fernando, tinha a minha idade e foi o primeiro amigo que tive.
Tive dois cães: o bolinhas pai e o bolinhas filho. Este último foi morto na rua por cão de maior porte e os empregados acharam fantástico recolher o corpo e chamarem-me (com 4 anos) para dizer o que haveriam de fazer. Hoje reconheço o bom senso da minha resposta: tapem o corpo e quando o meu pai chegar ele dirá o que fazer. Curiosamente hoje tenho medo de cães por força de ver uns pastores alemães atacarem o meu pai…
Lembro as idas a Malange (nomeadamente as ruas enormes e cheias de gente, e os grandes armazéns). Por algum motivo a única memória visual de uma pessoa foi a de um senhor com uma perna de pau…
Também lembro a caçada a outra piton junto ao rio enquanto eu aguardava dentro do jipe, as idas ao Lucapa (ao cinema e ao futebol de salão), as viagens em pequenos aviões até Lunada, as papaias e o marisco (não convém referir que eu e o meu irmão no fim dos jantares nos dedicávamos a despejar os copos de whisky).
Numa vinda de Lucapa o pequeno VW azul claro foi ultrapassado por um jipe com homens armados e avariou pouco depois. Mesmo pequeno apercebi-me do medo dos meus pais de termos de ali passar a noite (por sorte passou outro casal que nos recolheu). Quem não viveu em África não tem noção das longas distâncias e do pouco trânsito que havia no inicio da década de 1970)
Também vem daqui a minha primeira (e única) rebeldia: sendo o único com bicicleta juntei todos os miúdos da aldeia e fomos para uma piscina que existia a um km da aldeia. Em plena guerra civil, fácil é de imaginar o pânico dos pais ao chegarem e verem todas as crianças desaparecidas… Depois desta encarnação precoce de flautista de Hamelin perdi a costela rebelde…
O exercício de treino com fisga não me fascinou (só lembro o entusiasmo do meu irmão e a preocupação do meu pai de que o dono da fisga descobrisse quem a estava a usar)
Em 1972 vim pela primeira vez a Portugal. Primeira memória? O Bombarral cheirava a rebuçados… foi nesta primeira viagem que vi na televisão (a preto e branco um jogo de futebol e logo nasceu a minha indefectível preferência pelo Belenenses (nesse ano orientado pelo argentino Scopelli e 2.º com campeonato).
Um dia apareceram dois artistas ambulantes que a troco de comida e dormida se ofereceram para pintar um pequeno baú (ainda hoje a única herança desses tempos que possuo).
A minha crise Sarampo foi das provas mais duras da minha infância: temperaturas acima dos 40º, a boca toda inchada, constantemente a vomitar… mas comia sempre (apesar das dificuldades) e só quando a febre subia ficava quieto no meu canto… ainda hoje tolero bem a febre e, apesar de ficar impaciente, ignoro a dor…
O meu medo de agulhas vem deste tempo: no hospital um enfermeiro usava agulhas rombas para vacinar os pequenos africanos e eles gritavam imenso e daí nasceu o meu terror…
Um dia o ambiente mudou… os adultos passaram a falar em segredo e um dos empregados tentou atirar-me para um forno de padeiro aceso (origem do meu terror por fogo)…
Chegou o meu avô Manuel. Aos 74 anos pela primeira vez saiu de Portugal e andou de avião. Orientou-se sozinho em Luanda e chegou ao Calonda. Objectivo? Levar-me a mim e ao meu irmão para Portugal…
Muito chorei nesse dia. Não sabia o que se passava mas tinha a nítida sensação de que algo de mau estava a acontecer…


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